Sobre dois perfis, vertigens e obsessão


– Texto produzido como trabalho final da disciplina “Crítica Cinematográfica”.

Vertigem é um tipo particular de tontura, que se caracteriza especialmente pela sensação de rotação. De forma simples, ver as coisas girando. A palavra, ao longo dos tempos, passou a traduzir novos significados. Dentro da literatura, por exemplo, é comum se falar que muitos dos contos de Jorge Luís Borges são labirínticos ou vertiginosos. Isso porque constroem idéias que levam o leitor a perder, propositadamente, noções de tempo ou espaço. John Ferguson é o ex-policial que sofre vertigens graças ao seu medo de altura em Vertigo, um dos grandes clássicos de Alfred Hitchcock. Uma obra bastante vertiginosa, por assim dizer – tanto quanto as tonturas de seu protagonista.

Um filme basicamente estruturado a partir da idéia do olhar. Seja ele como representação do modo-de-ver (a perspectiva que se tem de determinadas situações) ou mesmo sobre o jogo de profundidade/superficialidade dos olhares. Como que dividindo sua história em duas etapas, Hitchcock constrói no primeiro momento de Vertigo o filme a partir da ótica de John. Só estamos onde ele está, só vemos o que ele vê. A primeira seqüência de imagens, ainda durante os créditos, é como um tempo de abstração que nos dá base para entender a força do olhar para o filme. Apenas planos muito aproximados dos olhos de uma mulher, para somente depois iniciar a narrativa. Se ainda não temos o narrador onisciente, que será apresentado naquilo que chamo aqui de segunda parte, neste primeiro momento é comum encontrarmos antecipações narrativas. Algumas em falas simples, como quando John e Midge conversam sobre o medo de altura dele, e o ex-policial afirma que pode fazer testes de resistência ao medo, desde que não comece testando na ponte Golden Gate (onde ele realmente estará no futuro). Já outras, em momentos mais elaborados e dramáticos da história: Madeleine conta a John sobre algo que pensa ter sido um sonho, relatando estar na torre de uma igreja numa aldeia espanhola. Antecipações que constroem para o personagem de John e, iniciam ao espectador, as dúvidas que trazem vertigem na recepção do enredo.

É importante ressaltar que existe um plano-chave nesta primeira etapa: John vai ao restaurante para observar Madeleine com seu marido. Ele está deslumbrado com ela e então o casal se levanta e começa a caminhar em direção ao bar, onde o ex-policial está. Quando próxima a ele, Madeleine pára, justo quando entra no quadro que nos remete ao olhar de John. Este então é o plano-chave, quando o perfil de nossa protagonista é focalizado em close-up por alguns instantes. A imagem, além de uma rima visual com tantas outras cenas do filme, é uma espécie de síntese de Vertigo. Estamos diante apenas de um dos lados da história, de uma das faces da mesma mulher.

A primeira etapa do filme então será também os traços do primeiro perfil. John, em sua observação voyerística e, pouco a pouco, também obcecada, apaixonada, envolve-se no mistério que há na figura de Madeleine e o espectador segue com ele. Se ele confunde-se com a verdade, nós também nos confundimos. Há no roteiro a intenção de gerar a vertigem em quem assiste, gradativamente, assim como acontece a John. Esse processo parece desencadear-se no pesadelo do ex-policial: imagens aleatórias de espirais, olhares e lembranças do momento drástico, montadas e elaboradas com colagens e sobreposições experimentais. Tudo para que em 1958 um thriller psicológico fosse além das fronteiras do cinema americano.

A passagem de uma fase para outra no filme é marcada pela obsessão de John. Mesmo depois de ficar internado, catatônico por meses em um hospital, ele decide simplesmente continuar procurando por Madeleine. A busca o leva até Judy Barton. Extremamente parecida com a mulher por quem procura, Judy tem apenas a diferença do nome e o cabelo mais escuro. John inicia um jogo de pedidos à moça, para que ela se vista, pareça e seja como Madeleine.

É a partir daí que a narrativa passa a ser onisciente. Por uma vez, mesmo depois de John não estar mais com Judy, a câmera permanece fixa em seu olhar aflito. Neste instante ela tem um flashback em que se desfaz quase todo o mistério da trama. Mas também há para o espectador a revelação de que trata-se da mesma pessoa: logo em seguida ela escreve uma carta para John, contando toda a verdade. Se pouco depois desiste e rasga a carta, temos a confirmação de que na segunda etapa de Vertigo continuaremos observando um perfil falso. A questão é que, agora, apesar de sabermos de grandes verdades sobre o caráter da personagem, isso parece nos levar à confusões ainda maiores; mais vertigens. Mesmo sendo quase cúmplices, continuamos muito mais próximos das tonturas de John do que das mentiras de Judy/Madeleine. A imagem dela em perfil aparece e é extremamente destacada por um contra-luz esverdeado, quase onírico. O plano seguinte completa de forma fabulosa a montagem: Judy surge de frente para a câmera, mas com o rosto dividido pela sombra que está justamente na mesma direção de John.

Sobre Vertigo, Martin Scorcese disse certa vez que Hitchcok pretendia descobrir a essência da obsessão. Que retratou isso de forma brilhante usando tantas espirais e movimentos circulares no filme (assim como a trilha também é fantástica e construída em idas e voltas). Ora, correr em círculos ou repetir o que já havia feito é tudo que John faz durante a história. Não é diferente nos minutos finais. O protagonista leva Judy, agora já totalmente caracterizada como Madeleine, ao mesmo lugar onde anteriormente acontece a tragédia com a mulher que amava. Ali, afirma que deseja resolver sua grande dúvida – e sabemos que tudo é uma questão de livrar-se da culpa que carrega. A cena da escadaria que lhe dá vertigem virou referência clássica, e já não se pode contar quantos filmes a homenagearam.


John não resolve seus problemas. Numa grande ironia do diretor (imerso em seu humor negro nada confortável) a história é entregue nas mãos de um simples susto. Tudo se encerra com uma freira, um tropeção e mais culpa. Vertigo é uma aula de cinema primorosa, seja na força que a direção de arte e figurinos podem ter, ou na capacidade de um autor elaborar a significação de cada plano e como isso será montado. Mas Vertigo também é um filme de amor. Se as duas faces de uma mesma personagem são filmadas em perfil, os beijos entre John e Madeleine ou Judy, também são.


Ricardo Oliveira
abril de 2008

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