Primeiros filmes vistos no Cineport: obras ousadas e curadoria bem estranha

Os dois primeiros dias de Cineport foram bem loucos, por assim dizer. O sucesso do festival é evidenciado justamente na quantidade de gente que apareceu para ver filmes. Na primeira edição na capital, em 2007, havia ainda aquele clima de desconfiança por quem não é da área e o evento tornou-se popular mais próximo do final, com a presença de Selton Mello e Ariano Suassuna na Usina Cultural da antiga “Saelpa”. Pode-se dizer agora que o festival já está consolidado e o público o respeita. As falhas são naturais para um evento que tem mais gente do que o esperado. Gente por todos os lados, nem que seja só pra rever os amigos. Onde ele poderia acontecer em 2011?

Meu final de semana, graças ao Cineport e às programações que sempre tenho, foi bastante maluco, o que me impediu de escrever algo antes deste domingo. O que não quer dizer, de forma alguma, que isto representa os próximos dias. Muito pelo contrário: a semana será mais amena e vai dar pra fazer muitas coisas legais que já tenho planejado – além das postagens diárias. O Twitter continuou com todo gás e trazendo à tona um novo tipo de reação pessoal: dentro da Sala Digital, onde passam curtas, se o filme está ruim eu paro no mesmo instante pra tuitar. Não entenda mal: é que, em alguns casos, é mais divertido mesmo.

FELIZ NATAL (Selton Mello, 2008) ****

Precisa ficar claro: a direção de Selton Mello é honesta, calcada em conhecimento técnico e, sobretudo, em escolhas que revelam o interesse em fazer do seu cinema algo de olhar seguro e reverente às suas influências. Honesta por não se basear em procedimentos canalhas para exibir seu assunto. Falar da podridão de classe média não é, de fato, nenhuma novidade. O diferencial está, porém, no “como”.

Eis então a técnica. Selton demonstra ser interessado num cinema de fluidez dos corpos pelo espaço cênico (John Cassavetes). É perceptível que, exceto pelas crianças, todos estão constantemente se arrastando – seja por estarem bêbados, chapados ou com sacas de areia nas costas (Lucrecia Martel). Os corpos já não espelem mais desejos ou expectativas, mas o que ficou frustrado. Há intensidade no que é dito neste expelir porque o filme de Selton é como alguém que aperta a ferida pra ver o pus sair. Este apertar algumas poucas vezes levará o enredo a passar do ponto e cair em pequenos exageros, como na cena do discurso bêbado-religioso à mesa – não por ele mesmo, mas por já haver demais do mesmo tom cênico anteriormente. Estas possíveis falhas, entretanto, podem revelar ainda um caminho inevitável: escolher falar do que se fala e do modo como se fala é estar passível de exageros no recorte.

Selton é interessado, por exemplo, em ensaiar sobre quebra de paternidade (vide o final de “Flerte Fatal” do Ira!, o que revela coerência pessoal) e o faz com destreza. O tom das falas nestes casos é duro, mas trabalha acima de tudo com o que não é dito. Apesar de revelar parte do passado de Caio (Leonardo Medeiros) em rápidos flashs, nunca sabemos exatamente o que aconteceu anteriormente ao que assistimos. Isto é uma escolha que, ao meu ver, continua sendo ousada dentro do cinema das obviedades de hoje: o foco narrativo continua sendo sempre baseado no que é dito e muito raramente no que não sabemos.

O espectador continua acostumado a receber tudo pronto. Há muito o que ser dito sobre Feliz Natal e faz-se necessário revê-lo ao longo dos próximos anos: me pegou de jeito.

Flávio Melo e Nanego Lira - Foto de Rizemberg Felipe

O PLANO DO CACHORRO (Arthur Lins e Ely Marques, 2009) ****

Foto: Rizemberg Felipe

Eu não tinha dúvidas quanto a possível qualidade técnica de O Plano do Cachorro. Arthur me conta sobre este projeto desde que ganhou o prêmio do Cineport em 2007. De lá pra cá seria evidente, pelos estudos, cotidiano e prática, que alguma coisa boa sairia dali. O que me deixou ansioso e com dúvidas, era exatamente que história seria essa a ser contada.

São dois cachorros, claro. Mas não sabemos disso até chegar em casa depois da sessão e pensar sobre o assunto. Porque não trata-se, de modo nenhum, de apenas dizer “eles são como cachorros”. Isto é simplista. Assim como seria simplista também da parte de Arthur e Ely se tivessem utilizado essa metáfora como metáfora (todo mundo já conhece o clichê filosófico sobre tratamento entre homens e cães). Mas no caso deles, não é. Para Ely e Arthur, os dois anônimos em cena realmente são cachorros. Isto faz toda diferença, daí a inconclusão final. Você vai esperar o que de cachorros? Que eles se apartam e discutam a relação? Claro que não. Mas o que é, portanto, o cachorro que surge neste trecho (o tal cachorro do “plano)? Um humano? Claro que também não, pois continuaríamos no simplismo. Talvez um olhar humanizado. Nesta barbárie, isto parece restar apenas aos cachorros. Em breve mais sobre o assunto.

NO MAIS… COMENTÁRIOS EM ATÉ 140 CARACTERES E
COTAÇÕES DE 1 A 5 ASTERISCOS SOBRE OUTROS FILMES VISTOS.


NA LATA, de Afonso Manoel da Silva Barbosa e Enver José Lopes Cabral // **1/2

– Cativa pelo personagem e tem uma câmera inteligente, mas oscilante na qualidade.

AMANDA E MONICK, de André da Costa Pinto // ***

– João Carlos Beltrão parece que não erra uma direção de fotografia. Ousado no tema, mesmo parecendo tão montado tecnicamente quanto os travestis.

HISTÓRIA DE PESCADOR, de Lílian Tandaya // *

– Primeiro sintoma de uma curadoria estranha. Do que valem fotos bonitas sem noção alguma do que é cinema ou vídeo?

LÚCIO LINS DE CORPO E BARCO, de André Morais e Jorge Bweres // ***1/2

– Belo e poético nas imagens-ponte, mas tradicional nos planos e captação das falas enquanto documentário.

GOOD NIGHT IRENE, de Paolo Marinou Blanc // ***

– O seu lado mais belo era o onírico que fica pra trás logo no começo. O todo é legal, decaindo bastante em certos trechos desnecessariamente.

N.E.G.O, de Chico Sales e Mayk Nascimento // ***

– Começa frágil, cresce muito no uso da montagem bem-humorada, depois cai novamente. Politicamente necessário.

CORAGEM MULHER, de Mislene Santos // *

– Aqui, agora. Segundo sintoma de uma curadoria estranha.

SWEET KAROLYNE, de Ana Bárbara Ramos // ****

– A doçura é o suficiente para um filme, e como disse Bruno de Salles antes dele começar, uma realidade mais saborosa que muita ficção por aí.

SINÉZIO, o fenômeno, de Otto Cabral // ***

– Câmera-perseguidora; plano-sequência documentarístico; realismo da realidade.

A LÍNGUA LAVRA, de Mônica Fidelis // 0

– Terceiro sintoma de uma curadoria estranha.

ENRAIZADOS, de Niu Batista // **

– Um problema evidente de trilha sonora consideravelmente irritante e bastante comprometedora – ao ponto de complicar a obra inteira.

O PLANO DO CACHORRO, de Arthur Lins e Ely Marques // ****

– Bela lição de decupagem até para os mais veteranos no assunto.

AOS PEDAÇOS, de Taciano Valério // ***1/2

– Com este, Valério atesta-se pra mim como alguém que tem muito a mostrar e dizer.

ESSAS MULHERES, de Allyson Viana, Carol Caldas, Janaína Aires, Jéssica Nascimento, Lucas Pontes, Maria Silva // 0

– Quarto sintoma de uma curadoria estranha.

FELIZ NATAL, de Selton Mello // ****

– Corpos que se arrastam. Um filme sobre zumbis disfarçados tirando as máscaras.

Os filmes cujo comentário refere-se à curadoria do festival passeiam pelo frágil, complicado e bastante ruim. O que isso tem a ver com a curadoria? Veja, não significa que numa seleção de filmes do audiovisual paraibano não possam haver obras ruins (já que elas também continuam revelando esta conjuntura), entretanto, é impossível este caso. Isto por questões técnicas básicas (como a diferença de imagens entre uma miniDV e uma filmada em câmera digital amadora). Sintomático notar que a coisa passou de qualquer jeito.

Ricardo Oliveira

One Reply to “Primeiros filmes vistos no Cineport: obras ousadas e curadoria bem estranha”

  1. Ricardo seu desgraçado. Agora fiquei com mais vontade ainda de ver Feliz Natal, a fila ontem não me deixou rsrs.

    Uma pena tb não ter visto o Plano do cachorro, estava com vontade.

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